quinta-feira, 30 de abril de 2009

A Violência do Outro

A natureza dos sentimentos humanos parece pertencer a um reino no qual a nossa compreensão ainda não ousou chegar, e nisso reside muito da nossa impotência em não conseguir entender algumas atitudes comuns à nossa raça.
Os cientistas costumam afirmar que existem três grandes enigmas a serem decifrados: a gênese universal, o surgimento da vida e a mente humana. Creio, porém, que o maior desafio é ainda o de tentar entender a nós mesmos.
Talvez por isso observemos tanto os outros sem que, contudo, tenhamos desenvolvido a habilidade de nos auto-observar – a não ser quando buscamos no espelho as nossas melhores proporções corporais ou na costumeira análise da vestimenta. Se assim é, residirá, portanto, no orgulho produzido pelo ego, a única motivação para ver a nós mesmos, nem que seja somente a nossa imagem refletida nos espelhos que escondem o mistério da nossa vaidade como também o das nossas frustrações.
Somos os melhores especialistas na observação visual “daquilo que podemos parecer” para os outros, já que nos acostumamos a viver de superficialidades. Mas, provavelmente, não temos conseguido criar a habilidade para ver além das fronteiras das imagens reflexas, pois a espécie humana parece jamais ter conseguido olhar para dentro de si mesma. Afinal, quem de nós consegue avaliar a si próprio, com um mínimo de procedência nos campos da lógica e da justiça? Contudo, medimos o próximo com a medida da nossa ignorância pois que, desconhecendo a nós mesmos, intentamos conhecer os nossos semelhantes – como se nisso residisse a lógica da nossa demência.
Acontecem hecatombes que nos chocam a sensibilidade como também casos isolados que conseguem chamar a nossa atenção, enquanto permanecemos completamente alienados quanto à destruição da vida que cotidianamente ocorre ao nosso redor. Que morram milhares mas se tais mortes ocorrerem pelos fatores de destruição já admitidos como “normais” ou “inevitáveis” pelo nosso psiquismo, que seja, “o mundo é assim mesmo”, costumamos pensar, quando não temos a pretensa ousadia intelectual de dizer isso em alto e bom tom. Porém, quando algo foge à rotina da nossa miséria espiritual e moral, “absurdo dos absurdos”, clamam acertadamente os incautos observadores do caminhar desta humanidade, esquecidos, porém, de acrescentar aos absurdos da vida o que eles próprios julgam como sendo normal e comum.
É deprimente perceber que não mais nos indignamos quando as forças do nosso complicado cotidiano atentam contra a vida de muitos. Isso não nos choca mais porque os nossos já insensíveis valores vêem com estranha normalidade o assassinato diário de milhares de pessoas perpetrados por esta estranha máquina de moer sensibilidades, que é a forma como a vida social se organizou neste mundo. Mas quando uma filha participa da trama do assassinato dos pais, o que é realmente lamentável sob todos os aspectos, nos apressamos a moralmente crucificar o já insepulto cadáver que, ainda vivo, observa a imprensa e as pessoas a patrulharem uma lágrima de arrependimento que seja no seu rosto petrificado pela insensatez.
Enquanto isso, na nossa face, a paradoxal insensatez — ou o que resta ainda da nossa capacidade de se indignar com algo ou alguma coisa — de nos acostumarmos com centenas de mortes estúpidas, as quais diariamente os nossos olhos vêem sem enxergar, ao mesmo tempo em que nos deixamos chocar pelas cores de fatos isolados nos quais a miséria humana atenta contra ela própria, no seu triste império estruturado nos valores do nosso anestesiado psiquismo.
O pior é que, mais que para julgar, dirigem-se as sensibilidades das pessoas no sentido de “demonizar” os miseráveis que, acima da média, assumem-se como sendo, entre os loucos, os mais doidos, pois que matam até os próprios pais. E serão sempre estes últimos a serem apedrejados pelos primeiros que, normalmente esquecem que não existem pedras suficientes na crosta terrestre para satisfazer a sanha de encontrar sempre pessoas ainda mais loucas que nós.
É deplorável como não conseguimos ver no próximo, por execrável que seja a sua atitude, um membro da nossa desgastada família humana, quando é esta mesma família humana que o ajuda a ser o que aparentemente é. Ao que parece, perdemos a noção de espécie, e mal percebemos quão danoso é, para a raça humana, ter entre os seus pares, desesperados que atentam contra a lógica da espécie já que, pelo menos, pai, mãe, filho e filha não deveriam jamais atentar uns contra os outros. O “pelo menos” aparece aqui como fator de aceitação desesperada da percepção de que muitos membros da espécie já aceitam que se mate por este ou aquele motivo. Mas matar o pai e/ou a mãe, o filho e/ou a filha, isto não!
Somo tão imaturos que esquecemos de observar que o germe, por trás do ato de matar ou de destruir, é o mesmo, independente das cores que venham a “sensacionalizar” o estúpido ato de atentar contra a sensibilidade de alguém, seja este alguém quem for. Precisamos urgentemente nos desacostumar em aceitar a morte não natural que cotidianamente marca muitas famílias deste mundo. É imperioso perceber, por trás de cada uma dessas mortes promovidas pela violência urbana, pela disputa entre grupos de traficantes de drogas, pelos conflitos étnicos, enfim, pelas guerras entre nações, os sentimentos do ódio represado e o da falta de compromisso com a vida como fatores desencadeantes da infelicidade planetária. E a grande questão que temos para repensar é: quem determina ou determinou que a vida na Terra tem que ser desse jeito? Os nossos hábitos institucionalizados como normais e aceitáveis — é a triste resposta. E se mais fôssemos aprofundar a questão teríamos que perguntar ainda: como chegamos a esse ponto? Processos educacionais equivocados, ignorância das gerações que na posição de filhos não compreenderam seus pais e quando na posição de pais não souberam educar seus filhos. E assim caminhou e ainda caminha a humanidade: cegos guiando cegos, porém, todos muito orgulhosos das suas capacidades intelectivas para perceber a realidade que os envolve.
A nossa percepção é tão frágil que sempre que algum membro da nossa raça se apresenta como sendo a antítese do que deveríamos ser, identificamos, com absoluta precisão, tudo o que nos diferencia da ovelha negra do momento, produzida pela mídia. No entanto, por covardia moral ou por falta de lucidez, deixamos de perceber o que nos pode assemelhar a esses a quem apontamos como sendo os violentos, os traidores da vida. E na verdade, somos todos violentos e poucas são as exceções na nossa espécie.
Perdemos a noção do que somos, se é que ainda somos alguma coisa enquanto seres humanos, já que o valor que costumamos dar a vida alheia somente salta aos nossos olhos quando a órbita da nossa percepção gira em torno do que tachamos como inaceitável. O problema é que o aceitável para nós é, na verdade, tão inaceitável quanto o que costumeiramente percebemos como tal. A única diferença é que o aparentemente aceitável se veste de aspectos horrorosos e, somente então, despertamos para o que nos causa indignação.
Ora, não deveríamos, em nenhuma hipótese, nos acostumar com a morte não natural de qualquer ser humano. Em tese, não seria cabível que nos permitíssemos distorcer de tal maneira a nossa sensibilidade, para chegarmos no ponto de achar normal “matar na guerra”, posto que os que assim fazem costumam ser homenageados, e ai daqueles que não “cumprirem o seu dever”.
O leitor deverá estar se perguntando se este missivista está defendendo o fato de alguém ser obrigado a ir para uma guerra e não guerrear com o aparente inimigo. Não, não é isso. É muito pior. Porque o germe, por trás desta questão é a estranha doença que nos marca de formular argumentos lógicos para as nossas loucuras enquanto nos inabilitamos a perceber que nada justifica “matar alguém”.
As nossas guerras são estúpidas e poucas delas encontram estrutura lógica diante dos valores que nobilitam a vida na Terra. E as poucas que encontram carecem de terem sido provocadas pela insensatez das nações quando criam vácuos na esperança das pessoas e estas se deixam levar por idiotices ideológicas como por exemplo as do nazismo e do fascismo.
O que deixamos de perceber é que não devem ser somente os “loucos institucionalizados nos poderes deste mundo” que descobrem a lógica e a razão para matar alguém ou muitos, com as suas doutrinas de guerra, mas também os “loucos”, assim avaliados pelos “institucionalizados”, formulam as suas lógicas pessoais e as suas razões para cometer crimes com as chamadas cores fortes da frieza e da insensibilidade humanas. Mas é o mesmo vírus a provocar — tanto nos aparentemente grandes timoneiros da epopéia humana que criaram e criam as guerras como nos solitários assassinos — a febre da loucura e da sanha em matar o próximo. Contudo, o repetimos, os primeiros “demonizam” os últimos como se existissem grandes diferenças entre pertencer a uma ou a outra situação. E muitos de nós, a chamada opinião pública, que pretendemos não ser nem uma coisa nem outra, nos deixamos levar pela onda ativada pela mídia que, sempre apressada, expressa o brilho dos seus aparentes apelos de indignação no varejo, deixando de observar o atacado da multidão de corpos sem vida. Mas, para que adianta contar os cadáveres se o que nos chama a atenção é somente a aparente cor ou o gênero do desastre?
Existem profecias de toda ordem feitas num tempo em que se referiam a um longínquo futuro e eis que estamos vivendo exatamente os tempos preditos pelo Apocalipse, dentre outras fontes proféticas. Ao mesmo tempo em que vemos as torres da esperança de muitos desabarem diante dos olhos atônitos da humanidade, esquecemos de aprofundar a análise do porquê essas coisas terem de ocorrer. Acostumamos a assistir as desgraças ao nosso redor sem que contudo tenhamos nos habilitado a entendê-las. E mesmo sem atinar para a causa das profecias e dos vaticínios referirem-se quase sempre a eventos onde a violência é entronizada pela estupidez humana como a força motriz do nosso desespero, seguimos na nossa dialética infantil conjugada ao mais insensato maniqueísmo classificando o que é o bem e o que é o mal, como se o bem se fizesse representar por quem semeia a exclusão social e a miséria moral em muitas regiões do planeta em nome dos seus pretensos nobres ideais de liberdade. Que tipo de liberdade, se a opressão econômica e política é a tônica das suas ações imperiais?
E o triste é supor que “o lado do bem”, tido por parte da mídia mundial, foi exatamente quem mais promoveu “guerras frias e quentes”, desde a segunda metade do século XX até os dias atuais. E é imperioso perceber que uma atitude doentia de um lado sempre provocará insanidades no lado oposto. Pena que não se perceba o óbvio, ou seja, estamos todos adoentados porque perdemos a capacidade de amar o nosso semelhante; porque conseguimos destruir todos os valores que dão sustentação lógica à vida na Terra, a saber, a honestidade de propósitos e de atitudes, a ternura, a tolerância, a solidariedade, enfim, o respeito à ética e à virtude, tão decantadas pelos filósofos da antiguidade mas completamente esquecidas pelos da atualidade.
O problema não está nessa entidade supra-humana chamada humanidade, o problema está em cada um de nós. O problema não está no outro mas sim em mim mesmo. O problema não está nesta ou naquela nação mas no exercício tacanho de uma cidadania de cunho nacionalista desprovida de qualquer noção mais ampla da espécie que formamos, enquanto família planetária. E o que, neste mundo, é feito em função do ser humano, visando o seu melhoramento?
Será que perdemos a substância do que somos e a referência do que deveríamos ser? Será que perdemos o sabor ou será que ainda temos jeito de observar e viver a vida e, mais ainda, termos a nós próprios como os responsáveis pelo destino do nosso berço planetário e de todos os que nele vivem?
Sou dos que pensam que há algo no nosso íntimo que jamais permite que nos transformemos naquilo que não somos ou, em outras palavras, por piores que possam ser as nossas atitudes, somos seres humanos com uma infinita capacidade de amar e nisso reside a nossa grande herança divina. Os que assim não logram expressar na generalidade das suas relações é porque estão adoentados em algum grau. Sob esta perspectiva, a quase totalidade dos que vivem neste mundo está adoentada. E a tal ponto que aceita como trivial o assassinato diário de milhares de pessoas que possam estar situadas longe das suas sensibilidades pessoais. Porém, se uma só morre no âmbito da sua percepção emocional.., cruz credo, é coisa do demônio.
Por falar nele, coitado! Creio que o ultrapassamos no que sempre se pensou ser ele o mais aquinhoado.
Sinceramente, precisamos criar mais um desempregado neste mundo, já que o mítico demônio deve estar completamente surpreso com tanta maldade e ignorância, pois nem mesmo ele seria capaz de tanta insensatez.


J V Ellam